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domingo, 30 de Março de 2014

Opinião: A Cúpula (Stephen King)



Título A Cúpula (Livros 1 e 2)
Autor Stephen King
Edição Bertrand Editora
Título Original Under the Dome
Tradução Ana Lourenço
Género Ficção Científica
Páginas 536 + 488
PVP 18,80 € + 18,80 €
Ano 2013 | Original 2009
Sinopse aqui
Compre: Livro 1 e Livro 2


Há uma história engraçada por trás da escrita deste livro. Consta que a sua premissa surge a Stephen King em 1976, um par de anos depois de o autor publicar o seu primeiro livro, mas que o projecto se revela, na altura, demasiado megalómano para as suas competências, pelo que o decide abandonar. Mantém-se, todavia, com ele a ideia («As boas ideias nunca nos deixam», viria um dia King a dizer) e, em 1982, trazendo já na bagagem uma dúzia de trabalhos publicados, retorna a ela, escrevendo-a sob o título The Cannibals. Desta vez vai mais longe. Continua, porém, a sentir que o resultado fica aquém do seu potencial, e guarda-o numa gaveta sem sequer o procurar publicar. Passam-se vinte e cinco anos. King é, por esta altura, um dos melhores e mais rentáveis autores do mundo, mas algumas vozes teimam em acusá-lo de estar a perder a originalidade. Em defesa do seu estatuto, debruça-se uma terceira vez sobre o projecto que há muito lhe escapa, mais decidido que nunca a levá-lo a bom porto. No espaço de um ano e meio, tem mais de mil páginas escritas à mão. Não lhe sai um livro, sai-lhe um épico, uma reminiscência de The Stand, talvez uma das suas melhores obras. Até que, um certo dia, uma senhora vai visitá-lo a casa e, perante tal pilha de papel, pergunta-lhe de que tratará o novo livro. «Bem, é sobre uma cidade que, de um momento para o outro, se vê isolada do resto do mundo por uma cúpula gigante», resume King. E eis que a tal senhora lhe diz: «Ah, como no filme dos Simpsons

King fita-a, pasmado. Mesmo que nem a soubesse na altura, a resposta era sim. Sim, a série animada mais famosa do planeta tinha mesmo lançado um filme. E sim, o filme tinha uma premissa em tudo semelhante à sua. Para mais, havia-se-lhe adiantado, estreando em 2007, quando King rabiscava ainda as primeiras páginas do seu épico. Quando enfim o publicasse, não haveria quem o não comparasse ao filme. Mas, com mais de mil páginas escritas, era demasiado tarde para parar as engrenagens.

Verdade seja dita que, apesar de algumas vozes o terem de facto acusado de plágio (talvez as mesmas que já o achavam pouco original), os dois trabalhos são substancialmente diferentes entre si e é perfeitamente concebível que tenham sido pensados em separado, à semelhança do que aconteceu, por exemplo, entre Battle Royale, de Koushun Takami, e a saga bestseller de Suzanne Collins, Os Jogos da Fome (The Hunger Games, no original). Mais difícil – ou mesmo impossível – de negar é a influência criativa de uma outra obra, da qual King toma símbolos, passagens e até a própria estrutura de eventos. Fá-lo de propósito, não haja dúvida, mas ainda assim é no mínimo estranho que ninguém o tenha «apanhado» (e uma rápida pesquisa pelo Google faz-me crer nisso mesmo). Chama-se «Apocalipse» e pertence ao Novo Testamento. É o tenebroso relato do fim do mundo, que encerra o mais célebre e controverso dos livros: a Bíblia.

Em «Apocalipse» (também conhecido como «Livro da Revelação»), um grupo de divindades lança terríveis castigos sobre a Terra. O planeta vê-se afectado por guerras, fome, sede, doenças e corrupção. As estrelas caem do céu e fumo preenche-o até se tornar negro. Entretanto, o Falso Profeta (na verdade um agente do Anticristo que se infiltrou na Igreja e chama a si a voz de Deus) reúne o cego apoio de muitos que, enganados por promessas e palavras de reconforto, se tornam meras ovelhas perante a sua liderança. Quanto à minoria que não o segue, é repudiada, torturada, destruída, mas em simultâneo marcada, no seu sofrimento, com o sinal de Deus, que supõe a derradeira salvação.

Ora, isto é um brevíssimo resumo de «Apocalipse», mas também o podia muito bem ser d'A Cúpula, já que todos os elementos descritos se encontram na história, embora em menor escala.

Inicia-se a narrativa d'A Cúpula com uma avioneta no céu e uma marmota no chão. Ambas conhecem o seu fim logo nas primeiras páginas, quando uma gigantesca redoma invisível surge, de um momento para o outro, em redor da pequena cidade de Chester's Mill. À boa maneira de Kafka, a sua origem não é explicada, pelo menos de imediato (e até podia nunca o ter sido, que um pouco de mistério não faz mal a ninguém). Simplesmente aparece, fazendo refém a população que se encontra no seu interior. No entanto, apesar do carácter externo do problema central, o verdadeiro «sumo» d'A Cúpula está nos segredos e nas atribulações internas dos seus personagens.

E que personagens! Não só é este um dos mais extensos elencos que já tive o prazer de acompanhar num único livro, como – e isto é que é impressionante – King faz questão de os desenvolver a quase todos, através de múltiplos pontos de vista, como se de protagonistas se tratassem. Temos, por exemplo: Dale Barbara (mais conhecido por Barbie... ou Baaaarbie), ex-tenente do exército que agora trabalha como cozinheiro no restaurante da cidade; Julia Shumway, irreverente editora do jornal local; Rusty Everett, possivelmente o mais calmo e racional habitante da cidade (e também aquele sobre o qual vão recaindo mais responsabilidades); James «Junior» Rennie, jovem sociopata com um tumor no cérebro que acaba por integrar o violento elenco da lei local; Phil «Chef» Bushey, um alucinado cozinheiro de metanfetaminas; Sam Verdreaux, o bêbado da cidade... São muitos, demasiados para os referir a todos, mas, no final, até o quase figurante (mas ainda assim hilariante) Horace, o corgi galês de Julia, deixa saudades.

Deixo propositadamente para o fim a referência a James «Big Jim» Rennie, que merece um pouco mais de espaço porque é, a meu ver, um dos melhores personagens que King já criou. É ele o Falso Profeta da comparação de há pouco, o grande vilão («antagonista» é o termo correcto, mas este não engana, é mesmo vilão) da história. Big Jim é um daqueles homens que todos conhecemos (nem que seja da televisão), uma figura carismática que se diz mover por motivos nobres e acaba por manipular todos ao seu redor para atingir os seus corruptos fins. Sempre à sombra do poder, é, na prática, quem manda. Tem, aliás, uma necessidade quase doentia de controlo e não admite que o contradigam, por muito inofensivas que possam ser as intenções. Um insistente problema cardíaco e o facto de não ambicionar ser mais que um peixe grande num aquário pequeno dão-lhe a dimensão necessária para funcionar. E a verdade é que eu não detestava tanto um personagem de King desde Norman Daniels n'O Retrato de Rose Madder. Prova do belo trabalho do autor.

Apesar das mais de mil páginas, a acção d'A Cúpula decorre em poucos dias. Existem, contudo, eventos mais que suficientes para nos manter atentos. Há confusão no supermercado, estrelas cor-de-rosa a cair, uma agitada assembleia geral, suicídios, incêndios, explosões e, lá mais para o fim, cerca de uma centena de páginas verdadeiramente angustiantes. Há também cabeças-de-couro (possivelmente uma representação meta dos leitores e da forma como encaram e se relacionam com os personagens dos livros que lêem) e inúmeras referências actuais, desde personalidades como Barack Obama e Wolf Blitzer a marcas e objectos do nosso dia-a-dia.

A preencher vinte e seis partes distintas que, em estrutura e gestão da tensão, muito se assemelham a episódios de uma série televisiva (e refira-se, a esse nível, que o livro acabou mesmo por gerar uma, embora as semelhanças para com a obra original sejam bastante ténues), estão capítulos muito curtos, próprios para uma leitura fácil e fluida. Nesse aspecto, o mérito caberá talvez menos a King, famoso por se entusiasmar e escrever demais, e mais à preciosa edição de Nan Graham. Seja como for, é compreensível a decisão da Bertrand Editora em dividir o livro original em dois volumes: se é certo que se paga duas vezes, ao menos não somos forçados a manusear um calhamaço com mais de mil páginas. Talvez possam, no futuro, optar por uma solução semelhante para outros clássicos gigantes de King, como It ou The Stand.

Uma última palavra para quem não aprecia ficção científica e ficou de pé atrás com a inclusão d'A Cúpula neste género: não temam, a história lê-se como distopia. Existe um ou outro objecto estranho (desde logo, uma cúpula gigante a cercar uma cidade), mas nada de naves espaciais ou confrontos com sabres de luz. Recomendo vivamente, tanto a fãs da era «mais original» de King como a quem nunca o tenha sequer lido e apenas procure uma leitura viciante e envolvente, com muitos personagens para conhecer.

Texto: Tiago Matos

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