domingo, 8 de Setembro de 2013

Eva Duarte: Ponto. Cruz.


Independentemente da luz, as velhas mãos trabalhavam. Já tão conhecedoras da sua função que mal dependiam dos olhos quase cegos. Dentro e fora do tecido, a agulha traçava o seu ponto. Metódica. Cansada. Olhos abotoados, sorriso trancado a linha, corpo mole e cabelos de lã. Umas morenas, umas tantas ruivas e outras louras. Em fila como meninas pequenas. Amontoavam-se pela casa, já quase sem espaço para ser casa.

Na altura das luzes e do frio, as pequenas da aldeia davam as mãos e enterravam as botas na neve, até chegarem à casa da velha. O caminho não era longo, mas, de tão branco, tornava-se quase labiríntico. Ao alcançarem a casa da velha, as mãos enrugadas entregavam as filhas dos seus dedos às meninas. E elas partiam com as bonecas abraçadas, já não tão sós. Mas duas meninas perderam-se no caminho invariavelmente branco. Com as mãos ocupadas pelo embalo que deviam à nova boneca, e por um lapso tão pequeno como atar um atacador da botinha, deixaram-se misturar na neve. O rasto anterior misturava-se com o novo. E, numa tentativa vã de se orientarem pelas pegadas, perderam-se inevitavelmente.

Um dia, nenhuma apareceu. Dois dias, nenhuma apareceu. Três dias, culparam a velha. Quatro dias, executaram a velha. Cinco dias, nevou. Seis dias, nevou. Sete dias, encontraram as pequenas, encontraram-nas vivas.

A gente da aldeia e, principalmente, os caridosos pais sentiram o peso da consciência ao oitavo dia. A velha forca em que executaram a velha senhora fora incendiada, numa aspiração de obterem o perdão da alma dela. Mas as almas mortas não sentem. Apenas permanecem. E essa alma permaneceu velha e rancorosa, incapaz de perdoar o erro dos pais e da gente. Tanto tempo a prendar crianças, naquela época festiva, com bonecas manufacturadas com trapos e ternura, para no final a executarem sem julgamento.

Acenderam-se velas na rua. Mas o vento rigoroso era justo – apagava-as. Acenderam-se velas dentro de casa. E as correntes de ar apagavam-nas. Pais, avós, tios, todos os familiares, alguns recebedores de bonecas eles próprios, em anos há já muito passados, ergueram pequenos altares junto das cabeceiras. Aspiravam um perdão que não mereciam. Em paralelo, as bonecas feitas pela senhora iam-se desfazendo à medida que o inverno amadurecia. E a casa da velha rangia ao longe, com saudades da inquilina.

Independentes de um corpo com pulsação, as velhas mãos trabalhavam. Já tão soberbas em tecido, que se desafiaram noutro material. Mês após mês, uma menina desaparecia. Mês após mês, a velha terminava uma boneca. A velha sorria, um sorriso que podia ser infinito já que não tinha boca. A velha sorria e chorava ao mesmo tempo, as lágrimas que eram as das meninas. Formavam um limbo de bonecas de vestidos cosidos à pele – trapos com vísceras. A velha ia-lhes cantando canções de embalar ou canções da época, num tom gasto e afastado da neve. Amontoava as novas bonecas da mesma forma que as anteriores, ocupando mais casa que a casa. Olhos abotoados, sorriso trancado a linha, corpo embalsamado, cabelos humanos. Umas morenas, umas tantas ruivas e outras louras. Em fila, como meninas pequenas que, agora, jamais deixariam de ser.

Um ano passava-se assim. Doze meninas desaparecidas, doze bonecas cosidas. Prontas a tempo de que, na data da execução da velha, fossem entregues aos pais. De madrugada, os pais encontravam as suas bonequinhas, de sorriso arrastado, sentadas na lareira. Choravam. Uns ajoelhavam-se enfatizando o arrependimento, rezando mais mil vezes por perdão. Outros trocavam o perdão pedido por maldições e pragas.

Ainda assim, no mês a seguir e nos onze que se seguiam a esse, mais meninas desapareciam, reaparecendo todas elas no décimo segundo mês, no dia consagrado. Os lamentos alastravam-se e arrastavam-se. Padres locais e dos arredores juntaram-se para exorcizar a casa abandonada, abençoar o local onde a forca se havia erguido e rezar na campa da velha senhora.

No entanto, tudo se repetiu no ano a seguir.

Trancaram todas as meninas em casa. E, ainda assim, desapareciam e reapareciam com os pontos da linha da velha. A população, enlouquecida, começou a matar as crianças que nasciam do sexo feminino. E os cadáveres reapareciam no mesmo dia daquele tão malfadado mês, como bonecas, com lãs cosidas ao couro cabeludo entrançadas como cabelo.

A insanidade atingiu o auge. Vários se enforcaram, desgraçados pela penumbra que se instalara sobre aquela neve branca.Gradualmente, a população desaparecia, até que, por fim, desapareceu. Então – e só então – as velhas mãos conheceram o descanso e pousaram a agulha.

Por: Eva Duarte

Eva Duarte é uma  jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal
e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.

Conto publicado na edição #04 da Revista 21

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